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Folha branca
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  • Foto do escritorRafaela Manzo

Depois de (me) parir

Tirei da máquina de café um expresso. A ideia é participar da reunião, ainda que virtual, me sentindo uma mulher, aquela antiga executiva. O mais próximo possível da mulher que um dia eu fui. Além do café, fiz uma maquiagem para esconder as olheiras, tirei do guarda-roupa um vestido que não me via há mais de um ano, prendi os cabelos, pus os óculos. Olhei meu marido e perguntei se ele me reconhecia. Eu não. Minha filha sorriu. Foi o sorriso dela que me deu força quando eu não tive. Eu já não fazia mais nada parecido, há tempos, desde que ser mãe se tornou minha principal aventura. Parir Lis, aos 40, foi e é a aventura mais incrível, indescritível, linda e maluca da minha vida.


O cliente, quando eu ligar a tela, vai me ver assim. Pronta para a reunião. Ele não tem a obrigação de saber, nem eu de contar, quem se esconde por trás desse vestido e do expresso. Uma mulher que esteve exausta, à beira do limite. Que não parou de trabalhar quando teve sua filha porque não podia, vivendo num País onde ser autônoma não lhe garante muitos benefícios. Que viveu uma pré-eclâmpsia no final da gestação, teve que dar à luz com 37 semanas, viveu um pós-parto difícil, com uma depressão profunda, que tem visto seus cabelos caírem no ralo do banheiro e os junta, aos tufos, dia sim e dia não. Que teve seu corpo transformado, arriscou um monte de coisa para viver esse sonho, que teve um medo enorme de perder tudo, que se sentiu culpada e incapaz, que precisou pedir ajuda, que se viu sozinha e isolada por conta de um novo surto de gripe e uma nova onda da pandemia que lhe tirou a possibilidade de uma rede de apoio efetiva, que precisou pedir ajuda ao marido para encarar as madrugadas, que se viu sem chão quando tudo que achava que sabia não lhe valia de mais nada.


Uma mulher em desconstrução tentando encontrar sua nova identidade depois de ver nascer sua cria; uma mulher que não sabia (e que na verdade ainda não sabe direito) que lugar ocuparia e se no mundo haveria ainda lugar para ela. Que questionou sua fé, seu propósito, sua utilidade, seus dons e talentos, suas convicções, suas relações, sua vida inteira, seu passado e seu futuro. Que sentiu um medo profundo de não ser compreendida em sua mais visceral vulnerabilidade. Que não sabia mais o que fazer ou aonde ir, ou a quem recorrer, quando o chão começou a tremer. Que viveu coisas que nunca conseguirá contar a ninguém, de tão difíceis e sofridas e impossíveis de serem descritas.


Uma mulher que agora está sentada à beira do computador registrando uma nova imagem de si, com um sorriso que começa a sair de novo, depois dos 120 temidos primeiros dias, um sorriso parecido com o da filha que acabou de nascer. Que tem fé num futuro melhor e convicção de que os dias mais difíceis, os do tal puerpério, vão ficando cada vez mais enterrados no passado - e que o sorriso iluminado da filha que tem nome de flor parece ser mesmo tudo que importa.


Ela sente o coração pulsar e se sente grata por isso. Por ter saúde. Por ter vacina. Por ter comida na mesa quando tantos perderam isso também - vidas, trabalho, comida. Ela sente gratidão pela saúde de sua filha, de seu marido, de sua família e seus amigos. E por toda ajuda que recebeu enquanto atravessou a turbulência.


Ela sente e sabe que o pior passou. Que virão ainda mais vacinas, dores de dente nascendo, madrugadas em claro - mas os motivos serão outros. Os hormônios estarão diferentes, a mulher está diferente. Ela foi revirada do avesso. Ela se tornou nova. Ela encontrou a força de uma leoa em sua mais terrível fragilidade. Ela vai viver. Ela vai além de sobreviver. Sua vida nunca mais será a mesma e, quer saber, ainda bem.

Nenhuma vida seria tão bonita sem os olhos curiosos, o sorriso largo e a chuva de benção que é sua Lis, meu lírio do campo.


A reunião vai começar. Eu vou recomeçar. Eu já recomecei, depois do reset que aconteceu.


Porque, no dia em que pari Lis, renasci. E, como ela, ainda tenho muito que aprender sobre essa vida nova que ganhei. Nenhuma ideia do que virá pela frente, mas sei que agora tenho novo fôlego e um novo e lindo motivo. Ela. Bendito o fruto do meu ventre.


Amém.

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